fbpx

Histórias Esquecidas de Manuel Milho III

PT

Dar tempo ao tempo

A noite, seja lá fria ou gelada, pode ser um manto quente e muito acolhedor quando o corpo está exausto, massacrado pelo trabalho e reclama descanso. Seja corpo de homem ou de boi, tanto faz. No fundo todo sangue é rio de uma nascente só e o deus da noite não escolhe filho para amar menos ou mais. A noite acolhe a todos.

A exaustão é sem dúvida três vezes maior do que a pedra gigante que eles todos, bois e homens, vão transportando com destino a Mafra por desejo de el-rei e a dormência no corpo está tão entranhada que ninguém toma nota de onde ela começa ou termina. Recostados também em mantas de pano tosco, os homens esperam o sono chegar. De tão presente, mal o sol se põe, o sono na hora mesma de acontecer prefere, por puro prazer, retardar um pouco mais sua chegada. É que isso que está na cabeça dos homens tem um tempo diferente. Não é assim uma máquina que liga e desliga a torto e a direito. Mesmo querendo fechar, os olhos continuam funcionando. Nessas horas eles se voltam para dentro da cabeça, para o espírito e para a memória. O espírito e a memória dos homens são também um rio e sua água é barrenta. Nem sempre aquele que quer dormir possui o desejo de banhar nesse rio com os olhos de dentro bem abertos. O mergulho no sono, com tudo que é olho bem fechado, é bem mais prudente e confortável.

Para fugir desse olhar que olha para dentro sem que o sono venha e aconteça, os homens vão jogando palavras para fora. Muitos sabem, ou preferem, ou foram mais condicionados a ouvir. Manuel Milho, que ouve mas que também tem preferência por falar, não está acordado mas também não dorme. Geralmente é deste lugar que lhe vêm as vozes que cantam para ele as palavras das histórias que, ouvindo, ele reproduz para seus companheiros.

Deitado com a barriga para cima, Manuel Milho tem um olho quase aberto e outro quase fechado. A hora do sono lhe transforma em um tipo de Camões. É logo para virem as musas. O olho quase aberto se despista no céu noturno, no azul bem negro e nos pontos de um branco que brilha; o olho quase fechado vê uma parte do rio de dentro, com sua água barrenta – e há barcos da noite que barqueiam nesse bendito rio. De um lugar aí entre esses dois olhos surgem as palavras da história que se segue. Baltasar, embora destroçado, não tem sono – sua cabeça agora é outra depois que voou. Ouvir as histórias de Manuel Milho é recordar-se do amigo Bartolomeu Lourenço. Matias já ressona. Miguel também. Jorge, Mário e Luis estão como os outros: de tão cansados e massacrados pelo trabalho, mal sabem se estão vivos ou já se foram dessa vida.

Aos ouvidos cansados Manuel Milho começa a falar de um outro Manuel que conheceu quando esteve dois dias em Lisboa. Esse outro Manuel nasceu e cresceu na Bahia, que fica no Brasil. Esse Manuel, que por ter nascido no Brasil levará para todo lado o fato de ser brasileiro, meteu-se em trabalhos pequenos na recolha dos impostos na colônia. Alguém grande dos circuitos do paço mandava em alguém que mandava em alguém e este, por sua vez, mandava em mais uns dois ou três e esses, na sequência, mandavam em outros tantos e alguém desses dava ordens a Manuel.

Uma das milhares de ordens que Manuel acatou na vida foi mudar-se para Lisboa. Querer não queria, mas o homem localizado na ponta final dos circuitos de ordens e de acatos tem pouco mando no próprio querer. Embarcaram ele, a esposa e a filha de sete anos rumo a Lisboa. A filha faleceu durante a viagem. Mário, como para verificar se continuava mesmo vivo, fez a pergunta. Morreu do que? Manuel Milho atalhou que não sabia pois o outro Manuel ocultou o motivo. Milho não quis escavar o assunto. Há certos buracos em que um homem não mete a mão.

Chegaram a Lisboa em pleno dezembro. O frio, enorme, impregnava-lhes os ossos. A mulher, já doente pela morte da filha, tinha a bile negra. Manuel, desolado ao dobro com a morte da criança e com a doença da mulher, triplicou sua desolação ao verificar que aquele frio era mais cruel do que haviam lhe alertado ou ele próprio havia imaginado. Nunca na vida sentiu nada parecido. Nem Anita, sua esposa, filha de gente portuguesa do norte, mas que também nasceu e cresceu no Brasil. Só o calor dos corpos à noite amenizava o sofrimento do casal e, durante o dia, cada um a sua maneira e a seu tempo, recorria ao vinho como para aquecer o coração, o corpo, a vida, tudo.

No Brasil, Manuel não era homem de muito vinho, mas em Lisboa não teve outro remédio senão enveredar pelos tintos. Sabe essas tardes milagrosas que, tendo o trabalho já feito, o homem dispõe de umas horas vadias antes de retornar à casa? Foi numa tarde dessas que Manuel conheceu Manuel. Já nem contavam os púcaros de vinho que mandavam vir. Um Manuel bebia mais do que o outro. Há certa altura o Manuel brasileiro falou de como era impossível viver com um sol desses, que não aquece. Como se estivesse magoado com toda a gente, disse o Manuel. Na Bahia o sol é nosso amigo, ou até mais que isso. O sol faz parte da gente. De sol a sol, com a conversa volta e meia chegando à Bahia e ao Brasil, o Manuel encostou-se ao outro Manuel e, percorrendo o redor com os olhos ao auxílio da cabeça e do pesçoco, disse ao outro, com vozes sussuradas: que não me ouça a Santa Inquisição, porque ainda quero viver e muito, mas isso de Deus e santas trindades não me entra pela cabeça. Algo no olhar de Manuel disse ao outro Manuel que ele poderia tomar essas liberdades sem que a sua vida corresse perigo. E ele foi adiante. Na infância, disse, um homem destes dos mais brasileiros, destes que são filhos daqueles tipos que já andavam por lá antes de gente daqui (não queria dizer “gente nossa”, mas pronto) a mando de el-rei crer que lá eram terras de cá – e quem diz terra diz tudo. Um homem destes me disse que isso de Deus não ser aquilo que há para as mãos tocarem é invenção da tristeza dos homens brancos. Assim é como só sentir a existência de Deus apenas como saudade. Deus não há, isto é certo, disse o mais brasileiro para Manuel. E o que há?, os Manuéis pergutaram e se perguntaram em tempos e lugares diferentes. O que há somos todos nós e todos somos iguais e tudo é igual e comum. E sendo comum, tudo é para todos. E mais até: nada é para ninguém, visto que nada e ninguém pertencem a ninguém e a nada. Assim dessa forma, perguntou retoricamente Manuel para Manuel (ao passo que Manuel agora fala aos outros), o vinho pertence a quem? O que bebemos ou o que vamos beber? O que bebemos, o que vamos beber e aquele que nunca beberemos. O vinho só pode pertencer à uva. Baltasar, deixando de lado por um segundo as lembranças de Blimunda, disse, assim como a se meter entre conversas de Manuéis: o vinho pertence mais à mão, pois a uva sozinha cai na terra, fica seca e vira semente, e da semente nasce só mais uva, não nasce vinho. Mão e uva não fazem só elas o vinho, retoma Manuel – aí se deve colocar na conta o engenho do homem. Sem o engenho a mão não procura a uva e a boca não procura o vinho. Isso é verdade, um disse, ou todos disseram. E o engenho pertence a quem? O engenho pertence ao tempo, Manuel Milho disse, e em seguida emendou: agora deixa estar e vamos dormir, que amanhã é dia. Com esse tipo de conversa é difícil alguém dormir depois, Mário disse. Dêem lá vosso jeito, Manuel Milho disse: o resto dessa história fica para amanhã. É preciso dar tempo ao tempo.

ES

Dar tiempo al tiempo

La noche, sea fría o helada, puede ser una manta cálida y muy acogedora cuando el cuerpo está exhausto, masacrado por el trabajo y exige descanso. Ya sea el cuerpo de un hombre o un buey, no importa. Al final, toda la sangre es un río de una sola fuente y el dios de la noche no elige un hijo para amar menos o más. La noche da la bienvenida a todos.

El agotamiento es sin duda tres veces mayor que la piedra gigante que todos, bueyes y hombres, están transportando a Mafra por deseo del rey y el entumecimiento en el cuerpo está tan arraigado que nadie se fija en dónde empieza o acaba. También apoyados en mantas de tela áspera, los hombres esperan a que llegue el sueño. tan presente, apenas se pone el sol, dormir en el mismo momento en que ocurre prefiere, por puro placer, retrasar un poco más su llegada. Es solo que lo que está en la mente de los hombres tiene un momento diferente. Esta no es una máquina que se enciende y apaga a la izquierda y a la derecha. Incluso queriendo cerrar, los ojos siguen funcionando. En esos momentos se vuelven hacia el interior de la cabeza, hacia el espíritu y hacia la memoria. El espíritu y la memoria de los hombres son también un río y su agua es fangosa. Ni siempre los que quieren dormir tienen ganas de bañarse en este río con los ojos bien abiertos. Zambullirse en el sueño, con los ojos cerrados, es mucho más prudente y cómodo.

Para escapar de esta mirada que mira hacia adentro sin ir y venir del sueño, los hombres comienzan a lanzar palabras. Muchos saben, o prefieren, o han estado más condicionados a escuchar. Manuel Milho, que escucha pero que también prefiere hablar, no está despierto, pero tampoco duerme. Que es en general de este lugar que las voces que cantan con él vienen las palabras de las historias que, escuchando, se reproduce por sus compañeros.

Tumbado boca arriba, Manuel Milho tiene un ojo casi abierto y el otro casi cerrado. La hora de dormir te convierte en una especie de Camões. Pronto llegarán las musas. El ojo casi abierto se pierde en el cielo nocturno, en el azul muy negro y en los puntos de un blanco brillante; el ojo casi cerrado ve una parte del río desde adentro, con su agua fangosa – y hay barcos nocturnos que navegan por este río bendito. De un lugar entre estos dos ojos surgen las palabras de la historia que sigue. Balthazar, aunque roto, no tiene sueño; su cabeza es diferente ahora después de volar. Escuchar las historias de Manuel Milho es recordar a su amigo Bartolomeu Lourenço. Matthias ya ronca. Miguel también. Jorge, Mário y Luis son como los demás: están tan cansados y agobiados por el trabajo, que apenas saben si están vivos o ya se han ido de esta vida.

A oídos cansados Manuel Milho empieza a hablar de otro Manuel que conoció cuando estuvo dos días en Lisboa. Este otro Manuel nació y se creó en Bahía, que está en Brasil. Este Manuel, que por haber nacido en Brasil, tomará el hecho de ser brasileño en todas partes, se metió en pequeños trabajos recaudando impuestos en la colonia. Alguien grande de los circuitos de palacio mandaba a quien mandaba a otro y éste, a su vez, mandaba a otros dos o tres y estos, en secuencia, mandaban a muchos otros, y alguno de estos mandaba a Manuel.

Uno de los miles de órdenes que Manuel obedeció en su vida fue la de trasladarse a Lisboa. Querer no quería, pero el hombre ubicado al final de los circuitos de órdenes y cumplimiento tiene poco control sobre el querer a sí mismo. Él, su esposa y su hija de siete años se embarcaron hacia Lisboa. La hija murió durante el viaje. Mario, como para comprobar si todavía estaba vivo, hizo la pregunta. ¿Murió de qué? Manuel Milho cortó en seco que no sabía porque el otro Manuel ocultó el motivo. Milho no quiso profundizar en el tema. Seguro que hay agujeros en los que un hombre no mete la mano.

Llegaron a Lisboa en pleno diciembre. El frío, enorme, impregnaba sus huesos. La mujer, ya enferma por la muerte de su hija, tenía bilis negra. Manuel, duplamente desolado por la muerte del niño y de la enfermedad de la mujer triplicó su desollamiento al comprobar que el frío era más crudo que lo que se le advirtiera o él mismo había imaginado. Nunca en su vida había sentido algo así. Tampoco Anita, su esposa, hija de portugueses del norte, pero que también nació y creció en Brasil. Solo el calor de sus cuerpos en la noche aliviaba el sufrimiento de la pareja y, durante el día, cada uno a su manera y en su momento, recurrió al vino como una forma de calentar su corazón, cuerpo, vida, todo.

En Brasil, Manuel no era un hombre de mucho vino, pero en Lisboa no tuvo más remedio que apostar por los tintos. ¿Conoces esas tardes milagrosas que, una vez hecho el trabajo, el hombre tiene unas horas libres antes de volver a casa? Fue en tal una tarde que Manuel se reunió Manuel. Ni siquiera se contaron las copas de vino pedidas. Un Manuel tomaba más que el otro. Hace un tiempo, el brasileño Manuel habló de cómo era imposible vivir con un sol así, que no calienta. Como si todo el mundo le hiciera daño, dijo Manuel. En Bahía el sol es nuestro amigo, o incluso más que eso. El sol es parte de nosotros. Desde el amanecer hasta el ocaso, con la conversación de vez en cuando llegando a Bahía y a Brasil, Manuel se apoyó en el otro Manuel y paseando su mirada con la ayuda de la cabeza y del cuello, le dijo al otro, con voz susurrada: Que el Santo. La Inquisición no me escucha, porque todavía quiero vivir mucho, pero eso de Dios y las santas trinidades no entra en mi cabeza. Algo en los ojos de Manuel le decía al otro que podía arrebatar esas libertades sin las cuales su vida corría peligro. Y prosiguió.
En la infancia, dijo, un hombre de los más brasileños, de esos que son hijos de esos tipos que han pasado por allí antes que nosotros aquí (no quiso decir “nuestra gente”, pero que sea) a instancias del rey creen que era tierras de acá – y quien dice tierra lo dice todo. Un hombre como este me dijo que esto de que Dios no es lo que las manos pueden tocar es una invención de la tristeza de los hombres blancos. Entonces es como sentir la existencia de Dios solo como un anhelo. No hay Dios, eso es seguro, dijo el más brasileño a Manuel. ¿Y qué hay ?, se preguntaron y se preguntaron los Manueles en distintos momentos y lugares. Lo que hay somos todos y todos somos iguales y todo es igual y común. Y siendo común, todo es para todos. Y aún más: nada es para cualquier persona, ya que nada y nadie pertenece a nadie y nada. Entonces, Manuel preguntó retóricamente a Manuel (mientras Manuel ahora habla con los demás), ¿Quién es el dueño del vino? ¿Qué bebemos o qué vamos a beber? Qué bebemos, qué beberemos y el que nunca beberemos. El vino solo puede pertenecer a la uva. Baltasar, dejando a un lado por un momento los recuerdos de Blimunda, dicho, así como para meterse entre conversaciones de Manueles: el vino es más de la mano porque solo la uva cae al suelo, se seca y se vuelve semilla, y la semilla solo son más uvas. nacido, no vino. Las manos y las uvas no solo hacen el vino, Manuel lo retoma, entonces hay que tener en cuenta el ingenio del hombre. Sin ingenio, la mano no busca la uva y la boca no busca el vino. Esto es cierto, dijo uno, o dijo todo. ¿Y quién es el propietario del dispositivo? El molino es del tiempo, dijo Manuel Milho, y luego agregó: ahora déjalo y vamos a dormir, porque mañana es de día. Con ese tipo de conversación, es difícil para cualquiera dormir después, dijo Mário. Hazlo a tu manera, dijo Manuel Milho: el resto de esta historia es para mañana. Hay que darle tiempo al tiempo.