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As 7 vidas de
Saramago

Biografia de José Saramago por Miguel Real

A longa e agitada vida de José Saramago pode ser desdobrada em sete vidas diferentes (ou sete momentos), cada uma com a sua especificidade existencial e o seu horizonte estético, tendo a pulsão da escrita como fio de continuidade.

1.ª VIDA
2.ª VIDA
3.ª VIDA
4.ª VIDA
5.ª VIDA
6.ª VIDA
7.ª VIDA
O CAMPONÊS URBANO

Vindo para Lisboa aos dois anos de idade, Saramago guarda da infância e adolescência as memórias de Azinhaga e da casa dos avós maternos, Jerónimo e Josefa, descritos em As Pequenas Memórias. A construção dos afetos familiares e da personalidade do pequeno Saramago serão determinadas mais pelo ambiente rural da zona da Golegã (a lezíria, o Tejo, os animais, a casa dos avós, os hábitos domésticos) do que pelo ambiente citadino, mais rigoroso e penoso (severidade do pai, pouco afeto da mãe, casas repartidas, dormir no quarto dos pais…). A primeira crónica de Deste Mundo e do Outro (1971), “A Cidade”, reflete como Saramago entendeu o sentido a sua vida até ao final da década de 1960, confessando ter sido tomado por um sentimento de estranheza perante “os muros da cidade” e a sua vontade de conquistá-los, dando nome à cidade; “Josephville” – a cidade era ele próprio, conquistá-la era conquistar-se, realizar-se.

O PEQUENO BURGUÊS REALIZADO E O ESCRITOR FALHADO

Versa sobre a totalidade das décadas de 1940 e 1950 – anos de verdadeira encruzilhada existencial: de aluno na Escola Industrial a serralheiro no Hospital de São José e empregado de escritório em duas Caixas de Previdência, buscando uma ascensão social (saída de casa dos pais, casamento com Ilda Reis, residência na Parede, nascimento da filha Violante) e estética (a descoberta de Pessoa. A obsessão pela escrita, as longas noites do Palácio Galveias…), superadoras do trabalho mecânico e escriturário. Saramago lança-se à conquista da “cidade”, mas falha: escreve poesia que não publica e Terra do Pecado (1947), de reduzido êxito, e Clarabóia (1953), que não consegue editar, inicia outros romances e escreve inúmeros contos. Lentamente, Saramago muda de pele (de vida), lutando contra as forças do determinismo social que o forçavam a uma vida urbana pequeno-burguesa, mas já não operária. Se a ascensão social é marcante, o estatuto de escritor, intimamente desejado e para o acesso ao qual trabalha incessantemente, não tem realização cabal. Tão forte é o fracasso que só voltará a publicar um livro quase vinte anos depois (1966).

O EDITOR CRÍTICO DA “CORPORAÇÃO”

Corresponde à década de 1960 e versa sobre o trabalho de Saramago como editor na Editorial Estúdios Cor, tornando o seu nome publicamente conhecido do meio intelectual, designado, negativamente, em carta a Rodrigues Miguéis de 1965, por “corporação”. Em 1966, define “corporação” literária: “…é de morrer. Tanta impostura, tanta falsidade, tanto esforço para parecer mais inteligente que o vizinho, e sobretudo mais célebre. E tudo isto sob a capa de modéstia jesuítica, uma capa cheia de buracos de orgulho e de inveja. E esta gente é a nata, e esta gente conduz, orienta, dá entrevistas, pontifica, tem opiniões acerca de tudo e de coisa nenhuma” (carta a Miguéis, 20-3-66). As insuficiências económicas, o trabalho editorial intenso, as traduções, uma paixão estranha por uma “figura de mulher” e o desejo de emigrar para o Brasil (correspondência com Jorge de Sena), a crítica literária na Seara Nova repercute-se na poesia como reflexo e síntese do mal-estar individual e da revolta social: publicação de Os Poemas Possíveis (1966).

SARAMAGO JORNALISTA:

“nas minhas crónicas está tudo” (C. Reis, Diálogos com José Saramago, 1998, p. 52)

No final da década de 1960, primeiros anos de 1970, Saramago é convidado a escrever crónicas no jornal A Capital, divorcia-se de Ilda Reis, apaixona-se por Isabel da Nóbrega, muda da Parede para a casa desta na Rua da Esperança, em Lisboa, despede-se conflitualmente da Estúdios Cor, prossegue as traduções e…sente-se feliz: pela primeira vez na sua vida (50 anos) tem tempo para escrever, a qualidade poética das suas crónicas refletem esta nova disposição de ânimo, visita Paris, Itália e Espanha. Ótimo divórcio: Ilda enceta nova vida, de datilógrafa da CP torna-se uma das melhores gravadoras portuguesas da segunda metade do século XX e Saramago, com a publicação de crónicas jornalísticas, que lhe fornecerá material para dois livros (Deste Mundo e do Outro, 1971, e Bagagem do Viajante, 1973), acede à importante função de compor os editoriais (anónimos) do relevante jornal da oposição política, o Diário de Lisboa (As Opiniões que o DL Teve, 1974). Participa na Comissão Democrática Eleitoral, adere ao Partido Comunista Português (PCP) pela mão do editor do seu primeiro livro de poesia (Augusto Costa Dias) e intervém no Congresso de Oposição Democrática. A “cidade” é agora identificada com o regime do Estado Novo: as muralhas têm de ser derrubadas. O futuro é fortemente imprevisível sobretudo ambíguo, indeterminado, mas deve ter um exclusivo sentido: praticar e louvar “a palavra e o canto” (último verso do poema “Noite Branca” de Provavelmente Alegria, 1970). É o que Saramago fará desde a primeira crónica até ao último romance. Mais por via das crónicas (algumas de rara beleza, como sublinham João Palma-Ferreira e Rodrigues Miguéis) do que da poesia, uma autêntica carta fora do baralho da poesia portuguesa desta década, a elite jornalística de “Josephville” fora conquistada, mas não a elite literata e intelectual. Mas Saramago segue firme na conquista de mais uma muralha de Josephville, “onde possam caber os passos firmes / Da rainha e do rei desta cidade” (últimos versos do último poema do mesmo livro: o rei era ele, e a rainha, Isabel da Nóbrega. Publica, o singularíssimo O Ano de 1993 e Manual de Pintura e Caligrafia (1977), romance crítico das formas convencionais de representação, e o conjunto de contos Objeto Quase (1978).

Após o 11 de março, assume a vice-diretoria do jornal mais importante de Portugal – o Diário de Notícias, onde, mais do que defender as posições do PCP, defende a “revolução socialista” ou o movimento dos trabalhadores que ocupam a rua, as fábricas, as casas, as terras (Os Apontamentos, 1977). Uma conflitualidade máxima atravessa a sociedade (assaltos a sedes de partidos de esquerda, a carrinhas de jornais que seguem do Sul para o Norte…) e o jornalismo portugueses, a liberdade de opinião e o pluripartidarismo são entendidos de modo diferente do atual: não expressos através do conteúdo noticioso de cada jornal, mas através do conjunto de todos os jornais, cada um identificando-se com uma posição partidária, defendendo um projeto ideológico, ou seja, tornando-se, em si, um “ator político” (João Figueira, Os Jornais como Atores PolíticosO Diário de Notícias, Expresso e Jornal Novo no Verão Quente de 1975, 2007, p. 131). Em síntese extremamente sintética, o DN de Saramago aproxima-se da esquerda revolucionária, o Expresso do PSD e o Jornal Novo do PS e do grupo dos “Nove”, vencedor do golpe militar do 25-11-1975. No DN, 24 jornalistas contestam as posições revolucionárias de Saramago, escrevem um manifesto, o Expresso e a BBC noticiam-no antes de ser apresentado internamente no jornal para debate, Saramago exige um plenário geral de trabalhadores, usa palavras muito duras (deslealdade, traição, manobra política), sai da sala, o plenário destitui os 24 jornalistas, os restantes jornais falam de “saneamento” (a conflitualidade era eminentemente política e refletia, no mesmo período, a tomada do jornal República pelos tipógrafos contra a direção e os elementos da redação). Saramago é demitido logo no dia 25 de Novembro de 1975, tem 54 anos, encontra-se desempregado, de vida bloqueada, o seu Partido não o apoia: “O pior de tudo, porém, foi aquele dia em que me defrontei com uma fria, gratuita e desapiedada indiferença, vinda precisamente de quem tinha o dever de oferecer-me a mão estendida” (Cadernos de Lanzarote, V, dia 22-4-1995) – os seus companheiros comunistas seguem para o jornal O Diário, novo jornal do PCP, alguém propõe Saramago como chefe de redação, mas a direção do Partido considera-o excessivamente esquerdista.

1976, Saramago, despedido, desempregado, escritor de reduzido êxito, é de novo salvo pelas traduções e, sobretudo, inesperadamente, por um contrato com o Círculo de Leitores: Guilhermina Gomes encomenda-lhe a Viagem a Portugal (1980), um novo e pessoal “Guia de Portugal”. Com a política, perdera tudo o que conseguira. As muralhas de Josephville tinham-se alteado de novo, repelem-no, não agora no operário autodidata, mas ao homem maduro que as conseguira furar. É preciso conquistar de novo a “cidade”, segue a antiga tática do guerreiro: recua para avançar, vive numa cooperativa da Reforma Agrária no Lavre (Montemor-o-Novo), onde colhe elementos informativos para a escrita do romance Levantado do Chão (1980).

O ESCRITOR PORTUGUÊS

Versa sobre a década de 1980 e, no todo da vida de Saramago, corresponde à conquista da “cidade” – a realização plena como escritor português e o lançamento da sua obra ao nível internacional. Se Levantado do Chão (1980) constitui a plataforma de lançamento, Memorial do Convento (1982) constitui a realização plena como intelectual público. Todos se rendem à sua escrita nova. Óscar Lopes, o mais importante crítico literário de então, assinala as duas características revolucionárias: 1. – o estilo, ressuscitando momentos passados da língua portuguesa; 2. – uma nova conceção de romance histórico, não assente na reconstituição do passado, mas na projeção num plano intemporal dos anseios mais fundos e permanentes da população pobre. Nesta década, Saramago debruça-se sobre a realidade e a história de Portugal: os desequilíbrios sociais permanentes de Portugal tomando como exemplo o Alentejo (Levantado do Chão), uma conceção crítica e satírica (mas não paródica) das elites que têm entortado a história de Portugal (Memorial do Convento, 1982), a crítica da visão cética do intelectual português (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984 – uma espécie de combate de boxe estético entre o autor e Pessoa no ringue que é Portugal), uma nova visão dos fundamentos da história de Portugal como país soberano, sem auxílio e domínio do estrangeiro (História do Cerco de Lisboa, 1989), o grito e libertação da Península Ibérica face ao capitalismo tecnocrata e liberal, dominado por monopólios (Jangada de Pedra, 1986 – não por acaso, ano em que os dois países ibéricos entram na CEE). No final da década, não sente mais necessidade de escrever romances sobre Portugal (exceto numa pequena parte de A Viagem do Elefante, 2008), torna-se um escritor internacional.

A “cidade” fora conquistada, Josephville era Saramago, este confundia-se com a cidade, o seu nome era citado com respeito e admiração. A partir de 1986/88, nova vida com Pilar del Rio, “a mulher que mudou o rumo da sua vida” (sua, de Saramago) (JC de Vasconcelos, Conversas com Saramago, 2010, p. 52) que lhe traz uma outra faceta da cidade, ainda não vivida em plenitude – a paixão intensa, o amor, a ternura, o total entendimento com um outro, o dia-a-dia em completude, o ser inteiro através de outro, é, numa antiga definição de amor, “aquele sem o qual eu não sou” – faltava-lhe vencer a muralha dos sentimentos e dos afetos vividos na intimidade. Faltava-lhe o sorriso patente da felicidade. Pilar del Rio trouxe-lho.

O ESCRITOR INTERNACIONAL

A partir de 1991, Saramago assume o estatuto de escritor internacional, abandonando as temáticas portuguesas e centrando-se na análise da natureza humana (A Estátua e a Pedra, 1999), passa a viver em Lanzarote (“Mas isto é mesmo o paraíso”. Último Cad. de Lanzarote, VI) aplicando de um modo universal a análise que até então restringira a Portugal: a necessidade humana de viver segundo uma ilusão religiosa (Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991), a análise antropológica e filosófica do Poder (Ensaio sobre a Cegueira, 1995) e a análise sobre os labirintos produzidos pela razão humana (Todos os Nomes, 1997; A Caverna, 2000…), a necessidade de uma revolução através do voto, ou da ausência dele (Ensaio sobre a Lucidez, 2004…). O reconhecimento do seu nome e da sua obra são agora mundiais. Não só Saramago conquistara a “cidade” como era reconhecido como uma dos seus mais importantes renovadores, portador de uma visão comunitária da sociedade, fundamento dos seus romances.

SARAMAGO ELE PRÓPRIO

De 1998 a 2010, ano da sua morte. Com a atribuição do Prémio Nobel em 1998 Saramago está, agora, absoluta e plenamente realizado como escritor e cidadão do mundo, discursa em todas as capitais e exprime abertamente a sua opinião: o mundo pertence hoje à alta finança e encaminha-se para um maior nível de exploração económica, mesmo para uma nova guerra. Afinal, para surpresa do próprio, Josephville não era uma cidade, era o mundo inteiro – e o miúdo guardador de porcos da Azinhaga tinha-se tornado um dos seus reis literários. A partir de 1993, cria em Lazarote uma “Josephville” íntima com Pilar del Rio e os amigos de ambos. Tem consciência de que revolucionou a língua e a literatura portuguesas e de que o seu nome, sem idolatria, brilha ao lado dos de Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, António Vieira, Almeida Garret, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Raul Brandão. Morreu zangado com o mundo, mas feliz consigo próprio – imagino-lhe o último pensamento: um rapaz de 19 anos sob o pórtico da entrada da Biblioteca Galveias, camisa aos quadrados, colarinhos e punhos virados pela mãe, calças puídas, sapatos cambados, a pensar: “sempre havemos de chegar aonde nos esperam. Vamos lá dar o primeiro passo”.