fbpx

Histórias Esquecidas de Manuel Milho VII

PT

Os Olhos Depostos

— Os homens que andam à jorna seguem preceitos e valores, como aqueles que têm camarote assegurado na corte. É é mais difícil, entre entulho, pó e lascas de pedra reconhecer as vontades, porque a existência é submetida à ordem aparentemente soberana do sentido do dever.
O Ruivo, recém chegado ao terreiro onde descansavam os homens ao fim do dia, memorizava o que Manuel dizia, como que organizando por filamentos as palavras que formariam a sua intervenção, no escuro do bosque, onde todos se reuniam para ouvir contar as histórias de Manuel (de onde vinham é que não sabia!), à boca das tendas que, minutos depois, se encheriam do cheiro tépido dos corpos arrasados de vontades outras. Os pobres reutilizam tudo, a começar pelas palavras, e depois suspende o juízo o sarro que vem diferenciar tudo a eito — amaldiçoada daí a luta de classes:
— Mas se têm vontades os trabalhadores porque escolhem eles uma vida condenada, sem nome, sem voz, assim coberta de poeiras, dores dorsais, sem cama nem asseio certos, de mulheres de noites avulsas? Não é verdade que a vida para ser bem vivida deve ter uma noite só, pela constância de uma mulher que se ame, pela discrição brutal dos filhos que se vêem crescendo?
Manuel debatia-se de si para si, como se apenas lhe restasse a hipótese vaga e imperfeita do perfil de um inimigo por que continuar respirando:
— Os motivos e as vontades são vários, ainda que o sustento seja a mesa sobre que todos matam ou entretêm a fome: uns carregam a pedra para ocupar as mãos que, de outro modo, acabariam debaixo das saias de uma mulher, furtando lojas, trapilhando a tenda do amigo, para que os não acusem de não ter feito tudo o que puderam contra a miséria. Outros vencem a preguiça, que é nada, com o peso da pedra, assim concorrendo, afinal, para uma obra religiosa, que o Senhor haverá mais tarde de pagar: é o bastante, tem que ser, acreditar! A miséria e a devoção tocam-se algures no caminho da fúria e da ternura, um e outro pedregulho suportam os ombros dos trabalhadores, havendo mais outros tantos que não é a pedra que afinal carregam, mas a fé na leveza, quando do dia cai o último raio de sol, e a lua é o prenúncio de um recomeço, o juízo suspenso num vento ameno, o rosto voltado para trás, para ninguém…
— E nós? Já pensaste o que nos move nesta terra, ora deserto, quentura infernal, ora lamaçal, humidade expurgada, trabalho fétido passando de mãos em mãos entre os pobres que são isso mesmo: trapilhos saudosos do direito de ser homem, que é ter coragem e não a usar?. É que só te ouço “outros isto, outros aquilo”, mas eu sou eu, e não encontro espelhos senão os que luzem a riqueza dos grandes que têm dom e donas mais o nome. Diz-me porquê. É que ele há dias que, palavra, não sei como continuar…
— Se não se usa a coragem, para que nos serve ela?
Arremete outro.
Baltasar acariciava o coto dormente, parte do todo do gancho, razão solidária entre a defesa e o combate. Ele não podia esquecer-se de Blimunda, que aconselhava o espigão para as noites escuras, e disse alto:
— O Manuel é capaz de servir o responso com maior habilidade e engenho, eu da mão esquerda não me sirvo senão para catar a vontade da minha mulher que está longe, mas deita fogo a tudo quanto se me tenta prender à podridão, e não anseio nada mais na vida, mas eu, Sete-Sóis, Baltasar afinal de alcunha, se é verdade mesmo que morremos antes de nascer e a vida chega depois do trabalho feito, vos digo — já além do bujão tragado de pinga, e é que pinga mesmo! —, digo-vos que a coragem é coisa de cantar ou catar, mas não que se use porque, se acalentada do coração aos braços dos homens, se não esgota. E o que se usa tem fim certo.
— Ó Manuel, mas de onde vêm estas tuas ideias? O pessoal está cansado, só queríamos ouvir uma história que nos embalasse para as estrelas. E olha que se nos finássemos no sono, era de coração aliviado. Mas assim um homem não dorme é nunca mais!
Manuel roncava, quem sabe, por sonhos agitados, que assim abrasavam as imagens da noite goela abaixo para o dia seguinte. A cabeça pousada numa pedra. Os homens tornam às tendas. Manuel abre os olhos, de mansinho: amanhã já sabe que a história será sobre o céu que é o mesmo sobre as cabeças de todos os homens e sobre as de todas as mulheres.
E porque os pensamentos são lendas a meia-haste, Manuel reconheceu, do outro lado do arco do acampamento, a voz do Ruivo contando a história de António Ele-Há-Olhados, com que sonhara há duas noites, para a qual procurava ainda um desfecho. Avançou o Ruivo:
— António era lavrador e chefe de uma família numerosa. Cansado dos duros ensinamentos que a vida insistia em dirigir-lhe, com maliciosa destreza de mãos, arrancou os seus olhos e deu-os aos filhos, que assim passaram a ver por si e pelo pai, protegendo-o dos perigos ao virar da esquina e ao abismar da montanha, os do cimento e os da terra, os da água e os do vinho, os do trabalho e os da mulher, enraivecida já do descaminho a que o marido se prostrava. Na cegueira salvam-se os famintos, perdem-se os medrosos. Mas se os olhos eram muitos e concentrados, produzindo assim uma visão aguda — e aguçada—, as ameaças eram de tantos mais alvos concentrados em um rosto só: cada um dos rostos dos cinco filhos que compunham o clã do Olhado. Assim, os filhos, extenuados da ânsia em que viviam, constantemente esperando uma flecha cravada no ombro de um e nos olhos dos demais, encontraram reservada, nas suas cabeças de olhar experiente, como solução, a de matarem o pai, e assim retomarem as suas identidades, os seus deleites paisagísticos, os desejos que, há já 10 anos, estavam condenados à direcção do rosto do pai que, como o cordão regulador das marionetas, determinava o norte dos filhos. Acharam que matando o pai poderiam finalmente voltar os olhos ao que verdadeiramente lhes interessava. Escolheram uma morte rápida, indolor, já que fazê-lo sofrer não era o papel para que ali se aprontavam.
— E mataram? O próprio pai? O nosso é um mundo doente…
— E cego!, respondeu boçal outro trabalhador, entre risos e algum cuspo, sem saber da verdade acabada de realizar.
— Mataram, sim, mas a morte adiantou-se à vida e os cinco irmãos passaram o resto dos seus dias a rever, todas as noites, assim que o sono caía sobre os seus olhos, a cena da matança.
— Enlouqueceram? Sobreviveram ao tormento? Tenho visto homens definhar por menos.
— Conta-se que foram mortos no sono, por um caçador interessado na visão absoluta que, diziam os rumores, era poder que a família detinha, assim decidido a arrancar-lhes os olhos da cara. Por isso, meus amigos, há algures por este mundo olhos sabedores, mas impreparados para os dias. O par não tem paradeiro certo. As próprias autoridades reais temem seguir no seu encalço, esperando o pior: um pesadelo eterno. Pois bem, que é afinal a eternidade senão a soma da vida que calha conseguirmos ver passar por cá?
— Mas é um ou são cinco os pares de olhos?
— Isso já não sei. Ouvi o Manuel contar isto em sonhos, não sei mais nada, mas quis testar-vos, não fosse esses malditos olhos estarem entre nós. Agora se ele nos vier com histórias e mistérios amanhã à noite, já temos muito paleio com que o surpreender.
Manuel dormiu a custo, imaginando que no lugar dos astros no céu boiavam os olhos do Clã do Olhado, e no dia seguinte a pedra que levantava com as mãos parecia fechar-lhe as pálpebras, tal o sono e o susto.

ES

Los ojos depuestos

— Los hombres que trabajan por jornada siguen preceptos y valores, como los que tienen un palco asegurado en la corte. Es más difícil, entre escombros, polvo y esquirlas de piedra, reconocer las voluntades, porque la existencia está sometida al orden aparentemente soberano del sentido del deber.
Ruivo, que acababa de llegar al patio donde descansaban los hombres al final de la jornada, memorizó lo que decía Manuel, como si organizara las palabras que formarían su intervención por filamentos, en la oscuridad del bosque, donde todos se reunían para escuchar las historias de Manuel (¡de dónde venían no lo sabía!), en la boca de las carpas que, minutos después, se llenarían con el tibio olor de los cuerpos devastados de otras voluntades. Los pobres reutilizan todo, comenzando por las palabras, y luego la diversión que distingue todo queda suspendida del juicio, de ahí la maldita lucha de clases:
— Pero si los trabajadores tienen deseos, ¿por qué eligen una vida condenada, sin nombre, sin voz, así cubierta de polvo, dolores de espalda, sin cama ni cierta limpieza, de mujeres que pasan la noche separadas? ¿No es cierto que para vivir bien la vida debe tener una sola noche, por la constancia de una mujer que se ama a sí misma, por la brutal discreción de los niños que van creciendo?
Manuel luchó consigo mismo, como si solo tuviera la vaga e imperfecta hipótesis del perfil de un enemigo por quien seguir respirando:
— Las razones y los deseos son variados, aunque el sustento es la mesa en la que todos matan o entretienen el hambre: algunos cargan la piedra para ocupar las manos que de otra manera terminarían bajo las faldas de una mujer, robando tiendas, destrozando la tienda de su amigo, de modo que no los acusan de no haber hecho todo lo posible contra la pobreza. Otros superan la pereza, que no es nada, con el peso de la piedra, contribuyendo así, después de todo, a una obra religiosa, que luego pagará el Señor: ¡basta, tiene que ser, para creer! La miseria y la devoción se tocan en algún lugar del camino de la furia y la ternura, uno y otro peñasco sostienen los hombros de los trabajadores, hay muchos más que no es la piedra que cargan, sino la fe en la ligereza, cuando cae la luz del día, el último rayo del sol, y la luna es el presagio de un nuevo comienzo, juicio suspendido en un viento suave, el rostro no se volvió hacia nadie …
— ¿Y nosotros? ¿Habéis pensado alguna vez en lo que nos mueve en esta tierra, ahora desierto, calor infernal, ahora fango, humedad borrada, trabajo fétido que pasa de mano en mano entre los pobres que son justamente eso: harapos que añoran el derecho a ser hombre, que es tener coraje y no usar? Es que solo escucho “otros esto, otros aquello”, pero yo soy yo, y no encuentro espejos sino esos que muestran la riqueza de los grandes que tienen “don” y “doña” más su nombre. Dime por qué. Es solo que lleva días ahí que, palabra, no sé cómo seguir …
—¿Si no usas el coraje, de qué nos sirve?”
Otro lo explota.
Baltasar acariciaba el muñón dormido, parte de todo el anzuelo, motivo solidario entre defensa y combate. No podía olvidarse de Blimunda, quien aconsejó al pico para las noches oscuras y dijo en voz alta:
— Manuel es capaz de servir al responso con mayor destreza e ingenio, uso mi mano izquierda solo para atrapar la voluntad de mi esposa que está lejos, pero le prendo fuego a todo lo que intenta atraparme en la decadencia, y no lo hago ‘ No lo anhelo. Nada más en la vida, pero yo, Sete-Sóis, Baltasar de apellido, si es cierto que morimos antes de nacer y la vida llega después de que el trabajo está hecho, les digo, más allá del tapón que gotea, ¡y de verdad gotea! Les digo que la valentía es cosa de cantar o de arreglarse, pero no que se use porque, si se la aprecia desde el corazón en los brazos de los hombres, no se agota. Y lo que se usa tiene un fin determinado.
— ¿Huy Manuel, pero de dónde salen estas ideas tuyas? La gente está cansada, solo queríamos escuchar una historia que nos arrullara hasta las estrellas. Y mira, si nos quedáramos dormidos para siempre, sería con el corazón aliviado. ¡Pero así un hombre NO vuelve a dormir jamás!
Manuel roncaba, quién sabe, de sueños agitados, que así le subían por la garganta las imágenes de la noche para el día siguiente. La cabeza apoyada en una piedra. Los hombres regresan a las tiendas. Manuel abre los ojos, suavemente: mañana ya sabe que la historia será sobre el cielo que es igual sobre las cabezas de todos los hombres y sobre las de todas las mujeres.
Y como los pensamientos son leyendas a media asta, Manuel reconoció, al otro lado del arco del campamento, la voz de Ruivo contando la historia de António Ele-Há-Olhados, con quien había soñado dos noches atrás, para quien estaba todavía buscando un resultado. Avanzado el rojo:
— Antonio era agricultor y la cabeza de una familia numerosa. Cansado de las duras enseñanzas que la vida insistía en dirigirle, con maliciosa destreza de manos, se arrancó los ojos y se los dio a sus hijos, quienes así empezaron a ver por sí mismo y por su padre, protegiéndolo de los peligros a la vuelta de la esquina y en el abismo de la montaña, del cemento y de la tierra, del agua y del vino, del trabajo y de la mujer, ya enfuriada por la forma en que su marido se postraba. En la ceguera los hambrientos se salvan, los temerosos se pierden. Pero si los ojos eran muchos y concentrados, produciendo así una visión afilada — y aguda—, las amenazas eran de tantos objetivos más concentrados en un solo rostro: cada uno de los rostros de los cinco niños que componían el clan Olhado. Así, los niños, agotados por la angustia en la que vivían, esperando constantemente una flecha clavada en el hombro de uno y en los ojos de los demás, encontraron reservada, en sus cabezas de ojos experimentados, como solución, matar al padre, y así retomar sus identidades, sus encantos escénicos, los deseos que, desde hace 10 años, estaban condenados a la dirección del rostro del padre, que, como el cordón regulador de los títeres, determinaba el norte de los hijos. Pensaron que al matar a su padre finalmente podrían volver la mirada hacia lo que realmente les interesaba. Eligieron una muerte rápida e indolora, ya que hacerle sufrir no era el papel para el que estaban preparados.
— ¿Y lo han matado?” ¿El propio padre? El nuestro es un mundo enfermo …
—¡Y ciego!”, respondió otro trabajador, entre risas y algo de saliva, sin saber la verdad que acababa de darse cuenta.
—Lo mataron, sí, pero la muerte se adelantó a la vida, y los cinco hermanos pasaron el resto de sus días repasando, todas las noches, en cuanto el sueño cayó sobre sus ojos, el escenario de la matanza.
—¿Se has vuelto locos?” ¿Han sobrevivido al tormento? He visto a hombres consumirse por menos.
Se dice que fueron asesinados mientras dormían, por un cazador interesado en la visión absoluta que, según los rumores, era el poder que tenía la familia, por lo que decidió arrancarles los ojos de la cara. Por lo tanto, amigos míos, hay ojos sabios en algún lugar de este mundo, pero que no están preparados para los días. La pareja no tiene un paradero seguro. Las propias autoridades reales temen seguir su estela, esperando lo peor: una eterna pesadilla. Entonces, ¿qué es la eternidad, después de todo, sino la suma de la vida que podemos ver pasar por aquí?
—¿Pero es uno o cinco pares de ojos?
—Eso ya no lo sé. Esto lo escuché a Manuel en mis sueños, no sé nada más, pero quería ponerte a prueba, si no fuera por esos malditos ojos entre nosotros. Ahora bien, si él viene a nosotros con historias y misterios mañana por la noche, tenemos mucho con qué sorprenderlo.
Manuel dormía con dificultad, imaginando que en el lugar de las estrellas en el cielo flotaban los ojos del Clan Olhado, y al día siguiente la piedra que levantaba con las manos parecía cerrarle los párpados, tal era su sueño y su miedo.