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Histórias Esquecidas de Manuel Milho XXII

PT

GESTOS DE CONVALESCENÇA

Ela dedilhava as páginas dos livros e seguia as palavras com os dedos como se lhes mostrasse o caminho. Apesar da existência prolongada, vivia como se ainda andasse na vez dos encantos. Percorria as ruas descalça e de braços abertos à espera de ser carregada por corvos, para lhes perguntar sobre a leveza no luto. Cuidava entusiasmos pelas coisas pequenas, feias e disformes.

Nos seus sonhos, os despertos e os da lua, costumava elaborar sobre a origem da poesia. Na última deambulação descobrira que: desde que um Homem cuspiu no outro, e a mãe sentiu na pele o arrefecer do tronco do filho, que a poesia repousa sobre os corpos.

Quando se atrasava para os compromissos, ela desculpava-se alegando que na sua casa amanhece mais tarde. Já quis ser rastejante para viver agarrada ao solo, sem recear cair. Já quis ser funcionária de uma repartição pública para decifrar pessoas e descobrir o gozo da repetição. Já quis ser…

Era conhecida por crescer paixões voláteis por pretendidos amantes. A sua primeira paixão foi um homem que falava baixo, porque passava muito tempo sozinho. A sétima foi uma florista que lhe dissera que os olhos são mais importantes que os assuntos importantes. A quinquagésima nona foi alguém que colecionava relógios para calcular com maior precisão a passagem do tempo. A sua mais recente paixão foi um construtor de janelas.

Sou eu, o construtor de janelas! Andava em cima da pressa, quando ela me apareceu na marcenaria solicitando uma janela que desse para outras perspetivas. Eu ia responder-lhe que só sou responsável pela construção das janelas e não pelas vistas que aparecem através delas, mas retirei a minha intenção quando ouvi da sua boca que havia mais poesia em fabricar janelas do que em ser poeta.

Respondi-lhe que sou apenas o que me é permitido ser.

Ao acolher a minha resposta, ela sentou-se sem dizer mais palavras. Perguntei-lhe, em vão, sobre o feitio, o tipo, o material e as dimensões da janela que ela pretendia. Perguntei em vão!

Continuou a fitar-me com um olhar por preencher. Para afastar o silêncio e a angústia, disse-lhe que o fabrico de janelas respeita preceitos técnicos, funcionais e estéticos. Expliquei-lhe as fases e os procedimentos de construção, mas alertei-a que só a técnica não salva. O que salva uma janela é o local onde ela é instalada. Pode ser robusta, bem adornada, resistente às correntes frias, e complacente com a luz e com aragens apreciadas, mas será sempre injustiçada se, quando aberta, der para uma muralha ou para um terreno baldio.

Quando gastei as palavras, calei-me. Quando já não conseguia mais vê-la encolher, toldei os sentidos e voltei determinado a levantar uma janela que encaixasse em arcos de todas as formas e medidas e pintasse novas paisagens a cada abertura.

Ao perceber o meu ânimo, os seus olhos voltaram a encher-se e os seus lábios deixaram de esconder os dentes. Enquanto eu engenhava, o seu corpo balançava e preenchia os compassos de uma valsa ternária.

Sobrou-nos vontade, mas as investidas dos desejos esbarraram na inevitabilidade da condição material e eu fracassei. Eu fracassei!

Ela diminuiu o entusiasmo pelas janelas, e disse-me que ia à procura de gestos de convalescença por frustrar.

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