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Histórias Esquecidas de Manuel Milho XV

PT

Histórias esquecidas de Manuel Milho – Raquel S.

Sinto-me muito urbana no metro, é sempre uma excepção, como se estivesse numa grande cidade, em Hong Kong, Tóquio. Sinto uma espécie de vergonha, como se eu fosse uma criminosa discreta, como quando não entendia o menu do McDonald’s; o fascínio, sinto um picotado à volta, como se o meu desenho se destacasse e saísse, como se toda a gente soubesse o meu segredo – eu sou suburbana, nota-se que me levanto na paragem anterior, que nunca adormeço, vê-se. Esta história não é mesmo uma história. Ia no metro a olhar, a ler mensagens de outros, e de repente pensei, ou lembrei-me – não sei se é bem um pensamento, mas também não vi estas coisas, não tenho essa coisa de ver memórias, é mais incrustado – olhei pela janela a passar subterrânea e lembrei-me de estar sentada na muralha a fumar cigarros e do rio de onde venho. Assim, de assalto. Continuou. Senti-me a trocar moedas para jogar Megatouch1, lembrei-me das motas estacionadas em frente ao salão de jogos, lembrei-me de procissões de velas como chorar à noite, e daquela vez em que fui furar as orelhas sozinha e pensei, no caminho para casa, que não podia morrer hoje porque tinha furado as orelhas; imaginei casas sem número, lembrei-me de boleias em carros cinzentos, Ford Fiesta, Citroën Saxo, Seat Ibiza, Ford Focus, da carrinha dos pais de alguém; pensei na cara de um rapaz lá muito longe que morreu de overdose em casa de uns galegos.

Estava no metro, nisto, e, de repente, o tecto começa a pingar devagar, o tecto pinga, eu vejo alarmada, ninguém repara, mas entra cada vez mais água, começa a entrar água por frinchas que eu não tinha visto, a carruagem começa a encher-se, a água sobe, submerge, os cabelos movem-se devagar como na Noite do Caçador2, até os do senhor careca: todos a respirar debaixo de água com guelras secretas, invisíveis. O chão ganha um limo, uma textura escorregadia e esverdengada, a minha própria pele, de repente, mineral, à mercê de mil espécies minúsculas que não sei nomear. Vejo as achigãs lentas, a lampreia nojenta mesmo enquanto viva, labaças, ervas compridas como cabelos de sereias, o canto que se ouve é dos suicidados caídos da ponte internacional: o homem que tinha dívidas, a mulher que enfiou o carro rio adentro, o rapaz romeno. As janelas do metro deixam entrar feixes

de luz que não ficam, os bancos metálicos cobertos daqueles musgos das pedras, ou líquenes – eu não sei como se chamam, debaixo de água. Na carruagem um suicida flutua, e noto depois uma espada que pesa debaixo do rapaz com o computador no colo, vejo soldados mortos e uma mulher cheia de pães nos braços, e vejo ouro roubado em rios do Amazonas, corpos de pessoas acorrentadas ainda a madeira de porão.

Abre-se um alçapão no fundo do metro e há ainda mais fundo: uma capela subaquática – diziam que vivia lá um dragão, pergunto-me se era o mesmo a quem se cortava a orelha no Corpo de Deus, a deitar fogo falso pela boca, puxado por funcionários da câmara. Do alçapão vem a luz do fogo mortiço, não desço. Caminho e nos bancos do metro estão senhoras prontas para ir para as termas, de touca, mulheres bordam sem perfeccionismo, enfermeiras com batas brancas de chinelos de praia, os velhinhos sentados no lar à espera do desfile de Carnaval do infantário, olho pela janela do metro e não consigo deixar de pensar: Quando é que aprendi a respirar debaixo de água?

1 Máquina de jogos de vídeo, de arcada, comum em cafés e salões de jogos durante os anos 80 e 90 do séc. XX e primeiros anos da década de 2000, no séc. XXI.

2 Sandra Carvalho, “A Noite do Caçador”, Presença. Prémio Literatura 2019 – Mulheres Empreendedoras Europa & África

ES

Historias Olvidadas de Manuel Milho – Raquel S.

Me siento muy urbana en el metro, es siempre una excepción, es como se estuviera en una gran ciudad, en Hong Kong, Tokio. Siento una especie de vergüenza, como si yo fuera una criminosa discreta, como cuando no entendía el menú de McDonald’s; la fascinación, siento un picoteado al redor de mí, como se mi dibujo se destaca y saliera, como se toda la gente supiera mi secreto – yo soy suburbana, se nota que me llevanto en la estación anterior, que nunca me duermo, se ve.

Esta historia no es realmente una historia. Yo estaba en el metropolitano, leyendo mensajes de otros, y de un repente, he pensado – pero no he visto esas cosas, yo no tengo eso de ver memorias, es mas algo incrustado – he mirado por la ventana pasando subterránea y me acordó de estar sentada en la muralla humando cigarros e del rio donde vengo. Así, asaltándome. Y ha seguido. Me he sentido cambiando monedas para jugar Megatouch¹, me recordé de las motos aparcadas en frente de la sala de juegos, me acordé de procesiones de velas como llorar por la noche, y aquella vez que fue sola perforar las orejas y pensé, de camino a casa, que no podía morir hoy porque había perforado las orejas; me imaginé casas sin número, recordé aventones en autos grises, Ford Fiesta, Citroën Saxo, Seat Ibiza, Ford Focus, de la camioneta de los padres de alguien; pensé en la cara de un niño muy lejos que murió de sobredosis en casa de unos gallegos.

Estaba en el metro, en esto, y de repente el techo comienza a gotear lentamente, el techo gotea, yo me veo alarmada, nadie se da cuenta, pero entra más y más agua, comienza a ingresar al agua por grietas que no había visto, el carruaje comienza a llenarse, el agua se eleva, sumerge, el cabello se mueve lentamente como en A Noite do Caçador², incluso los del señor calvo: todos respiran bajo el agua con trucos secretos e invisibles. El piso tiene un limo, una textura resbaladiza y verdosa, mi propia piel, de repente mineral, a merced

de mil pequeñas especies que no sé cómo nombrar. Veo los lentos róbalos, la lamprea repugnante, incluso mientras vive, acederas, hierbas largas como el cabello de la sirena, el canto que se escucha es de los suicidas caídos del puente internacional: el hombre que tenía deuda, la mujer quien pegó el auto en el río, el niño rumano. Las ventanas del carruaje periten que entren rayos de luz que no se quedan allá, los asientos de metal cubiertos por esos musgos de las piedras, o líquenes, no se como se llaman, bajo el agua. En el carruaje un suicida flota, y luego noto una espada que pesa debajo del chico con la computadora en su regazo, ya veo soldados muertos y una mujer llena de pan en sus brazos, y veo oro robado en ríos de

Amazonas, cuerpos de personas encadenadas todavía la madera de la bodega.

Se abre una trampilla en la parte inferior del metro y hay aún más profundo: una capilla submarina. Dijeron que había un dragón allí, me pregunto si fue el mismo que cortó la oreja en el Cuerpo de Dios, para acostar el fuego falso por la boca, tirado por los empleados de la casa.

De la trampilla viene la luz del fuego muerto, no caigo. Camino y en los bancos de metro son

damas listas para ir al spa, gorra, mujeres bordadas sin perfeccionismo, enfermeras con zapatillas de playa blancas, los viejos sentados en casa esperando desde el desfile de carnaval de la infantería, miré la ventana del metro y no puedo evitar pensar:

¿Cuándo aprendí a respirar bajo el agua?

¹ Máquina de huegos de vídeo de arcada, común en cafeterías y salones de juegos durante nos años 80 y 90 del siglo XX y los primeros años de la década de 2000, en el siglo 21.

² Sandra Carvalho, “A Noite do Caçador”, Presença. Premio Literatura 2019 – Mujeres Empreendedoras Europa & África