fbpx

Histórias Esquecidas de Manuel Milho XX

PT

UMA HISTÓRIA PARA IEMANJÁ

Eu sou Manuel, um homem da terra. Vi um convento ser construído a partir da riqueza de outras terras. O ouro retirado do Brasil e enviado a Portugal tornou-se um monumento extravagante, fruto de um capricho de um monarca nada brilhante. Quem vive com ideias megalomaníacas e pouco talento, precisa contar com a sorte de nascer rei.

Um contador de histórias como eu não morre nunca. Quem um dia foi um marinheiro audaz¹, também não. Atravessei os séculos porque alguns encontros são inevitáveis.
Foi assim que a conheci.

Atraquei na costa baiana em dois de fevereiro. Se fosse de passarola, talvez o destino não tivesse se cumprido – mas, joguei-me ao mar, rompi o oceano. O mar é o mundo, é mais da metade dele, uma eterna travessia.
É numa pedra no Dique do cais da Bahia que ela mora. Antigamente, sua casa era na costa da África, mas veio ver as águas do Rio Paraguaçu e aqui ficou. Nessa pedra é onde ela penteia os cabelos, ouve as preces de seus filhos e orienta as marés. Ela adora ver a lua cheia nas noites sem nuvens e canta – mas só canta cantiga bonita².

As mulheres do cais dançam para ela e a presenteiam com perfume, pente, espelho e sabonetes. Os pretos, seus filhos prediletos, batem tambores e cantam para ela, com devoção. Os marinheiros, os pescadores, os homens do mar, esses, mais do que todos, a temem e amam.

Por aqui, ninguém tem um nome só, toda a gente na Bahia tem um apelido, um recorte no nome com pedaço de história. Com ela, não é diferente: alguns a conhecem por Dona Janaína, outros por Princesa de Aiocá, também a chamam de Inaê e Dona Maria, mas seu nome mais conhecido é Iemanjá.

Era noite de Lua Cheia, nenhuma nuvem no céu. Enquanto andava com Guma pelo Cais, conheci Rosa Palmeirão, com sua navalha na saia e punhal no peito, brindamos com rabo de galo no Farol das Estrelas. O velho Francisco me disse que não há nenhum contador de história melhor do que os que estão na beira do cais da Bahia – os filhos de Iemanjá têm muitas memórias para partilhar.

Fomos para a beira do mar, a luz que irradiava na água iluminava o breu da noite escura. Guma contou-me que os homens da terra acham que aquele brilho prata no mar é o reflexo da lua. Mas, os homens e as mulheres do mar sabem que aquela luz que irradia na água em noite de Lua Cheia, na verdade, são os cabelos de Iemanjá³.

¹ “Memórias ao Mar”, Jorge Portugal e Vevé Calazans
² “Iemanjá Rainha do Mar”, Pedro Amorim e Paulo César Pinheiro
³ Este conto nasce a partir dos entrelaçamentos dos livros “Memorial do Convento”, de José Saramago e “Mar Morto”, de Jorge Amado.

ES

UNA HISTORIA PARA IEMANJA

Soy Manuel, un hombre de la tierra. Vi un convento construido con la riqueza de otras tierras. El oro sacado de Brasil y enviado a Portugal se convirtió en un monumento extravagante, fruto del capricho de un monarca poco brillante. Los que viven con ideas megalómanas y poco talento deben contar con la suerte de nacer rey.
Un narrador como yo nunca muere. Quien una vez fue un marinero atrevido¹, tampoco. Crucé los siglos porque algunos encuentros son inevitables. Así la conocí.

Atraqué en la costa de Bahía el 2 de febrero. Si hubiera sido a vuelo de Passarola, tal vez el destino no se hubiera cumplido, pero, me tiré al mar, rompí el océano. El mar es el mundo, es más de la mitad, una travesía eterna.

Eu sou Manuel, um homem da terra. Vi um convento ser construído a partir da riqueza de outras terras. O ouro retirado do Brasil e enviado a Portugal tornou-se um monumento extravagante, fruto de um capricho de um monarca nada brilhante. Quem vive com ideias megalomaníacas e pouco talento, precisa contar com a sorte de nascer rei.

Um contador de histórias como eu não morre nunca. Quem um dia foi um marinheiro audaz¹, também não. Atravessei os séculos porque alguns encontros são inevitáveis.
Foi assim que a conheci.

Atraquei na costa baiana em dois de fevereiro. Se fosse de passarola, talvez o destino não tivesse se cumprido – mas, joguei-me ao mar, rompi o oceano. O mar é o mundo, é mais da metade dele, uma eterna travessia.
É numa pedra no Dique do cais da Bahia que ela mora. Antigamente, sua casa era na costa da África, mas veio ver as águas do Rio Paraguaçu e aqui ficou. Nessa pedra é onde ela penteia os cabelos, ouve as preces de seus filhos e orienta as marés. Ela adora ver a lua cheia nas noites sem nuvens e canta – mas só canta cantiga bonita².

Es sobre una roca en el Dique do Cais da Bahia donde vive. Antiguamente, su casa estaba en la costa de África, pero vino a ver las aguas del río Paraguaçu y se quedó aquí. En esa roca es donde se peina, escucha las oraciones de sus hijos y guía las mareas. Le encanta ver la luna llena en las noches sin nubes y canta, pero solo canta hermosas canciones².

Las mujeres del muelle bailan para ella y le regalan perfume, un peine, un espejo y jabón. Los negros, sus hijos predilectos, tocan tambores y cantan para ella, con devoción. Marineros, pescadores, hombres de mar, esos, más que todos, la temen y la aman.

Por aquí nadie tiene un solo nombre, todos en Bahía tienen un apellido, un corte en el nombre con un trozo de historia. Con ella no es diferente: unos la conocen como Doña Janaína, otros como Princesa de Aiocá, también la llaman Inaê y Doña María, pero su nombre más conocido es Iemanjá.

Era una noche de luna llena, ni una nube en el cielo. Mientras caminaba con Guma por el muelle, me encontré con Rosa Palmeirão, con la navaja en la falda y el puñal en el pecho, brindamos con cola de gallo en el Farol das Estrelas. El viejo Francisco me dijo que no hay mejores narradores que los que están al borde del muelle en Bahía – los niños de Iemanjá tienen muchos recuerdos para compartir.

Fuimos a la orilla del mar, la luz que irradiaba en el agua iluminaba el terreno de juego de la noche oscura. Guma me dijo que los hombres de la tierra creen que el brillo plateado en el mar es el reflejo de la luna. Pero los hombres y mujeres del mar saben que la luz que irradia en el agua en una noche de luna llena es, en realidad, el cabello de Iemanjá³.

 

¹  “Memorias junto al mar”, Jorge Portugal y Vevé Calazans
²  “Iemanjá Reina del Mar”, Pedro Amorim y Paulo César Pinheiro 
³ Este cuento nace del entrecruzamiento de los libros “Memorial do Convento”, de José Saramago y “Mar Morto”, de Jorge Amado.